terça-feira

Maria

Maria tinha nascido quando ninguém mais nascia, nem morria e estava sempre e de qualquer maneira sendo Maria. Finalmente fez 30 anos despediu-se de pai mãe e irmã não tinha nada nos bolsos mas tudo nos olhos e no peito uma sede de aguá limpa que lhe chegava à garganta dentes, língua e lábios. Maria cantava uma maneira que era  leve e burra de amar tudo aquilo que não tinha nome nem jeito de ser no concreto das janelas pequenas e emboloradas do seu quarto sótão. Não sabia se era bem gente ou bicho ou pedra. Na infância tinha uma vez ficado dez dias sobre um telhado sem comer em uma fotossíntese simbiótica com a chuva que caia no telhado.
Seus pais eram, ela tinha certeza, gente da melhor espécie. Comiam tudo que havia de bom no mundo, trabalhavam muito e dormiam em horários corretos, não bebiam e não fumavam. Sorriam a maior parte do tempo e raramente falavam sobre coisas que não fossem práticas entre eles. Se Maria aparece nos horários pré determinados por eles não havia problema com o resto do tempo.
Nessa viagem sem rumo Maria olhava para os lados enquanto caminhava por uma calçada estreita e sem laços. Não tinha um pedaço de si mesma que não era lânguido e pasteurizado dos medos e vícios do mundo. Não havia lógica nos seus traços de mulher tão indescritível como as Marias sabem ser na maior parte do tempo. Agora não há mais nada que possa ser parte de Maria, e isso acontece pelo acontecido com Maria. Ela de bocas e olhos lânguidos e mãos e sexo lânguidos. Ia andando calmamente com seus pés (lânguidos), cheios dessa languidez.
Voltando do lugar onde estava, que não se sabe onde, ia indo para um outro também desconhecido, mas trazia escrito em grego no rosto um ar de trapaça. Vivia em mundo destruído pelo calendário. Sabia que estava fadada ao fracasso. Nunca colocara muita fé nos próprios fatos. Gostava da mágica desconstrução dos dias que caem na noite como se fosse pedaços de um novo e desconhecido calvário.
Em dias como esse, caminhava pela rua. E pensava, enquanto estava longe, em significados novos para velhas estátuas que ficava sempre sentadas no seu caminho habitual, não me pergunte leitor e leitora, quando ela descobriu com languidez que estava caminhando pelo caminho habitual que fazia. Do trabalho para casa. Os pés de Maria, caminhavam sem saber que ela não sabia para onde estava indo. Lugar: onde. Como? Assim, muitas referências à lugares, sempre os lugares e os tempos. Pense, que se estivesse agora no mesmo lugar que você estaríamos juntos, e se estava ontem em lugar, e você está hoje nesse mesmo lugar, não estamos juntos, ou se amanhã estivermos no amanhã só que em outro lugar, também não estamos juntos concretamente. Metafisicamente dirão alguns, podemos estar juntos em lugar e tempo diferentes... Por isso podemos estar no mesmo lugar que Maria está, junto com ela caminhando como com os mesmos pés lânguidos e certeiros para o mesmo lugar. Então, estaríamos todos juntos no mesmo lugar e não poderíamos ser tempo, nem espaço, só ser gente mesmo, que fica em um lugar onde Maria está, compreende?
Justamente pode isso, Maria parou e olhou para, quem escreve (eu, outro eu ou lados e submundos da própria mente escabrosa e assustada com o poder que tem), estamos no mesmo lugar e tempo, portanto juntas e Maria me olha acariciando meu rosto com mãos leves. Languidamente.
Pois sim, Maria chega a sua casa cansada de tantos passos, eu chego com ela, Maria me olha com languidez e me bota para fora de sua casa. Está na hora de dizer aos seus pais o habitual "boa noite" e dormir. Para despertar languidamente amanhã.