sexta-feira

O tempo da memória

Recebi intuição. Deveria ir visitar minha avó paterna, as últimas notícias que tive dela eram da pressão sempre alta.

Quando cheguei no sítio, depois de 3 meses sem ir até aquele lugar, morando no coração de uma cidade de médio porte, foi como ser tragada para um outro tipo de existência, por um túnel de memória de coisa boa e coisa que não tão boa, mas que foram da vida até aqui.

Olhando minha vozinha, que de alguma forma na minha cabeça de criança e de adulta sempre teve feições de heroína, minha vozinha velhinha, frágil. Bateu no fundo de mim uma saudade de um tempo que passa cada vez mais rápido. Da grande casa em que a família se reunia. Umas das memórias mais vivas de Natal em família que tenho foi de um natal excepcionalmente passado por lá. Lembro da reza pela noite a fora, da devoção com que a simplicidade celebrava Jesus Cristo.

Depois me lembro do rancho sempre cheio de gado, da retira do leite, da feitura do queijo. Da maravilhosa máquina debulhadeira. Como adorava entrar no paiol e sentir o cheiro de milho seco, deitar na montanha de espigas ainda com palha, depois rodar aquela manivela da máquina com toda força enquanto alguém ia jogando as espigas já sem casca e ver aquele chuva amarela como ouro acumulando uma montanha de milho para as galinhas.

E como minha avó sempre dizia que desperdiçávamos o precioso milho crioulo.

Lembro da cabra chifruda que me perseguia pelo terreiro, do chiqueiro com porquinhos, das pontes e das flores que minha avó sempre plantava.

Lembro da quitanda de biscoitos com 15 mulheres assando a vida, os biscoitos e se dando força. Ah! E o cheiro da casa nesse dia era um sonho infantil.

Lembro do pavor que sentia no dia de matar os porcos que gritavam. E do cheiro do moinho de pedra, do som que ele fazia quando acionado, milho e pedra, que dava em fubá.

Lembro dos gansos que corriam atrás de nós e depois nós atrás deles, das galinhas e da quentura dos ovos recém postos. Dos pintinho em fila e de um peru que as vezes por milagre aparecia no terreiro para virar comida em pouco tempo.

Ah! E tinha o dia de varreção do terreiro, íamos até o mato colher vassourinha, com bambu eram feitos cabos e tudo era limpo, separado, varrido.

E quanto era dia de doce, descascar pêssego, laranja e cidra. Lavar o tacho de cobre na bica com sal, limão, areia e palha de milho. Bater o figo em um saco com sal grosso para tirar os pelos e depois 3 dias cozinhando o doce de figo no fogão de lenha. Das queimaduras quando fazíamos goiabada e pessêgada.

Quando chovia era hora de desentupir o cano e com enxada subíamos até a primeira caixa d'água para arrumar a água.

A tarefa chata de levar almoço para o meu pai e quem mais estava capinando o milho no alto do morro. Oh! Dar de mama para os bezerros que perderam a mãe era disputadíssimo, assim como soltar bezerros para mamar e ficar olhando eles balançando os rabos, felizes.

Misturar o farelo no cocho com o capim e a silagem, a sensação de enfiar a mão no capim recém picado.

Mexer o queijo que cozinhava e comer a massa ainda quente, que belezura.

Beber leite no pé da vaca.

Ter medo do caminho em que os corpos de bezerros mortos eram jogados.

Uma tarde especialmente bela da infância foi quando meu pai foi capinar um roçado e achamos ossos de vaca que viraram ossos de dinossauro.

O fogão de lenha, a dispensa! O grande baú onde a comida seca era guardada.

As idas religiosas do meu avô até a vila todo domingo.

O cheiro impagável dos cavalos, a sensação de cavalgar, o rio grande.

Tudo ali retumbando. E uma saudade de ser simplesmente.


Observando a casa da minha Vó Nadir, que hoje mora na vila e não mais no sítio, me deparei com uma foto pendurada na parede: eu ela e no meu irmão.

E me dei conta do amor que a mantém viva e que nos mantém vivos.

O tempo implacável passa e nós passamos com ele.

O que vale é o que se tem nesse meio tempo. A potência que gestamos ao sentir o peso de cada coisa, de sentir os ritmos e as belezas humanas e naturais.

As vezes é preciso voltar ao início para seguir em frente.

Sou tanto dessa terra! O sangue fala mais alto disse minha madrasta. O rio grande é meu sangue, esse lugar me chamou de volta, fui concebida, gestada e nascida na Mantiqueira, nas montanhas.

Fosse outro lugar não tinha vindo. Fosse outra mãe e outro pai tinha desistido no meio do caminho.

Meu início foi potente e belo. E é disso que preciso para continuar em 2015.

Que venha o tempo, os anos e o que mais for. Que venha toda a força da vida.

E que nesse caminho que eu tenha potência e coragem para realizar algo de bom nessa terra.