sábado

Parafraseando

        Era uma moça. Tinha a beleza e o tipo mais comum do mundo. Nada de excepcional. Exceto pela maneira com que mantinhas conversas. Lera mais do que podia na vida e tinha a estranha, mas crucial capacidade de memorizar tudo que lia. Sua cabeça era capaz de citar rótulos de xampu, bulas de remédios e todos os livros que chegara aos olhos e estômago um dia. Quando na infância se dera conta de disso, sentiu-se uma estranha criatura, sua peculiaridade estava tão além do que cabia no mundo.
         Os dias eram perigosos demais dependendo do livro que tinha em mãos. Pensava que não poderia nunca ter filhos ou cachorros. Às vezes escrevia frases em um papel para lê-las e ser possível dizer qualquer coisa sem um tom poético ou imaginativo. Com o tempo passou a ficar calada e a fazer votos de silêncio. Rezou, orou, foi em cultos, terreiros. Leu a biblia, e virou uma repetição só de evangelhos, o alcorão e passou a usar véu, o bagha gita e meditou durante mil anos sobre tudo que estava na terra e fora dela. Nada a removia do vício de ler. Ela, essa moça, tinha esses dias em que nada podia esconder. Citava versos, musicas e trechos inteiros de livros bons, ruins.
             A moça trabalhava em um escritório contábil. Calculava e calava-se. Chega uma época, pensava ela, que é preciso parar de achar graças das desgraças e aceitar a ignóbil condição de loucura que é dado aquelas que por motivo ou causa ou razão ou não, vieram para  lado de cá com dons do outro lado.
             Andava pela rua a recitar um dicionário, achava graça saber palavras que não eram compreendidas. no meio de tanta incompreensão enigmática, era agradável para ela uma incompreensão comum que só deslizasse de sua boca sem ser percebida. Gostava infinitamente do anonimato, nele ela podia lembrar-se de Cecilia, de Fernando e seus eus e de tudo que lhe apetecesse na vida. Podia cantar todas as canções e nunca mais se lembrar do que era feito o céu ou amor.
              Odiava os números, mas se sentia livre neles e na liberdade que eles proporcionavam à ela em sua lógica e cartesiana certeza. A contabilidade, por fim, tinha sido uma peça de solução para a fome de lirismo que recaia sobre suas mão e olhos a vida toda.
                  O instante precedente ao seu apercebimento do mundo, naquela noite clara e gélida como só o inverno saber ter, tinha sido gasto com  a leitura de uma palavra nova. Não havia palavra nova para ela há anos e mais anos. Seu coração cansado de pulsar  no ritmo da esperança se calava em ritmo acelerado de surpresa. Uma palavra nova. De repente. Surgiu. No segundo, instante ela tinha se calado por dentro. Um medo pavoroso estar perdendo sua capacidade tomou conta dela toda. Repetiu o poema que lera, e outro anterior e outro e outro o livro todo e depois o outro livro e depois, acalmou-se. E quedou imóvel. Tinha certeza que já ouvira aquela palavra, já lera, já a repetira por muito dias. Era uma palavra sonora. Bonita. Impecável(sem nenhum pecado). Mas, ela se esquecera de quando e como. E o seu som, sua grafia eram novos e surpreendentes(supra dentes). Naquele dia, quase sem cor ouviu repentinamente sua própria voz, dizendo aquela palavra e reparou em como ela se encaixava nos lábios grosso e de como sua saliva tornava macia e suave o entra e sai dessa palavra de sua boca.
                     Podia conquistar o mundo todo com aquela palavra. Era pequena às vezes outras vezes cabia nela o mundo e suas historias. O seu lado esquerdo dorminhoco e seu lado direito manso se uniram em torno daquela palavra. Mágica.
                        Há algum tempo, crescia dentro dela essa estranha sensação que agora se transformava em palavra e em meios de ser o que era. Nada tinha sido feito de excepcional. Trabalhava, comia, andava, limpava, lia, lia e lia e aquilo estava cada vez maior, como um filho que chora a noite pedindo leite, por fora e no interior  uma mudança brusca e uma semente gritava por água. Essa sede que nunca se apercebera de estar em um ser, agora pedia dela algo parecido com seu espírito. Inquietação.
                          Ebulição. Gravidez. Todas as palavras de vida e morte cabiam dentro dela  agora estava fadada aos olhos de gato e a voz macia do algo que falava dentro dela de uma forma ou de outra. Ao olhar a janela do quarto viu que uma chuva fina e silenciosa caia e brincava com a brisa. O mundo, aquela chuva, que agora era o mundo, eram diferentes de tudo que ela conhecera até agora.
                            Seus olhos e sua nuca estavam molhados de susto. Aquela palavra recaia sobre ela. Na cama os lençóis, cobertas e travesseiros. A moça. As coisas não eram as mesma, mas também não eram diferentes. Foi as compras no dia seguinte. À noite, fritou três ovos. Come-os com pão. Com arroz. E puro. Deitou-se na cama. De barriga para cima satisfeita com sua refeição. Encarou o teto do pequeno apartamento. Pela janela uma luz da lua. Poucas estrelas, o suficiente para apontar e fazer um pedido. Talvez uma estrela cadente passasse. E ela sabia o que pediria: para que nunca esquece aquela palavra de novo logo... pegou no sono.
                      
  





segunda-feira

Pescaria

Eu amei. O homem não era um caçador. As presas mulheres da vida dele tinham ficado em um passado distante e em sua nova faze da vida ele buscava. O lago estava calmo e silencioso e os peixes nadavam tranquilamente no balé aquático que a quietude montanhosa traz. Ela estava sentada à beira do lago. E tudo á sua volta era dela: o homem e a mulher dentro do lago, o silêncio, os peixes, as montanhas e o passar do tempo. Não havia nada existindo fora dela. Ela era. E os ecos de seus pensamentos ressoavam em todas as mentes daquela tarde. O céu começava a se fechar. Era uma tempestade vinda de dentro e de fora. E a mulher era um espelho. A cada passada de rede seu coração se espremia dentro do peito. E tudo de transformava em água turva e despedaçada. Não havia perdão nem medo. Seu desespero era desespero de peixe, seu coração de peixe, ela um peixe. Mais peixe do que outras coisas. Mais peixe. Mais peixe... Só peixe. E contra todas as possibilidades da água turva e da tempestade. Um peixe é fisgado. Ela é fisgada. E fica na rede. Uma rede que transformada em prisão. E se debatem junto em um só corpo. A outra mulher e o homem dentro do lago turvando a água despertaram em si caçadores e um instinto nato de sobrevivência. Era preciso mais. E a mulher pressa na rede se debatia. Debatia. Sendo arrastada até o final do lago e jogada a margem. Ela e o peixe. No céu a tristeza se fazia cinza e o vento juntava em pesadas nuvens o ar. O sol resistia e entrava por entre a cor rasgando em dourado e luz o pesar e a dor do peixe.


Jogados ali, o homem tira da rede o peixe que é colocado a beira do lago. Em uma sacola de água. Ali o peixe respira. Respira. Devagar e a cada respiração o céu se escurece e a mulher respira menos em seu sangue. A água é pouca, o tempo é muito. Respiram peixe- mulher mulher-peixe. O tempo se esqueceu de passar. Respiram. Mas a montanha quieta se compadece deles. A chuva cai. Cai. E mulher e homem fogem e fogem como se não pudessem ser diferentes. Pois todas as dores são iguais. Em cor. Em luz. Em doer. Esquecem-se do peixe que fica a margem do lago. A chuva cai e vira a sacola. O peixe esta livre escorrega até a beira do barranco. É só cair no lago voltar para o seu lugar e pronto. Ele cai e cai na rede. Debate-se, e fica preso. O lago enche a mulher esta presa. A água sobe. Eles estão presos. O lago estoura. Tudo se esvazia. O peixe fica preso na rede e se debate. Debate. Debate. Debate. Debate. Debate. O peixe morreu. A mulher morreu. Eu morri.